Submeti o texto abaixo para publicação no Boletim Informativo da Sociedade Brasileira de Ciência do Solo. Eu explico: na última edição do Boletim em 2008, vários sócios da citada Sociedade escreveram artigos a respeito da questão "publicar ou perecer". Como também sou, por força do ofício, sócio desta Sociedade, achei que também poderia manifestar minha opinião (distinta) a respeito...
“Eu afirmo que o único objetivo da ciência é aliviar a miséria da existência humana”. (Bertold Brecht).
Com sua famosa peça Leben des Galilei (Vida de Galileu), da qual foi extraída a frase para a epígrafe deste texto, Bertold Brecht queria chamar a atenção para a responsabilidade social da ciência e dos cientistas. A peça de Brecht nos convida a pensar, portanto, no objetivo da ciência, e qual é o papel que nós, cientistas, temos na sua demarcação. Porém, ainda que se possa pensar em objetivos diversos, para épocas e lugares distintos, ouvi de um Professor (que publica bastante e que usufrui das benesses do “sistema de recompensa científica vigente no País”) que “o objetivo da ciência é publicar”. O “publicismo” produziu, assim, um reducionismo de fins na Ciência. Afinal de contas, entre publicar e perecer, fica-se com a primeira opção. Trata-se, antes de tudo, de se salvar a própria pele! Mas moral e eticamente é aceitável pensar que o objetivo da ciência seria publicar, ou de que a publicação seria uma forma de “prestar contas à sociedade” pelos investimentos públicos em pesquisa? Ou ainda, de que um “sistema de recompensa científica” devesse ser baseado em publicações? A propósito, precisamos de um “sistema de recompensa”? Para que?
Com efeito, se o nosso compromisso for mesmo o de não nos submetermos indiscriminadamente à pressão para publicar, é preciso enfrentá-la apontando como superá-la, sob pena de jogarmos o bebê fora com a água do banho. Assim, por exemplo, é preciso apontar as origens e implicações de um “sistema de recompensa” baseado em pressão para publicar, quem o engendra e o mantém, quem dele se beneficia, etc. Para mim, estas questões não foram abordadas suficientemente nos artigos sobre “publique ou pereça” na última edição do Boletim Informativo. A própria razão para o Boletim tratar deste assunto é, de certa forma, oculta, não explícita. Senão vejamos. Por que este assunto poderia interessar aos sócios da SBCS para ser abordado em seu Boletim? Certamente não há uma única razão, mas é certo que a pressão para publicar tem causado um descontentamento generalizado que não está relacionado exclusivamente às exigências em si de produtividade científica “impostas” pelas agências de fomento à pesquisa e formação de recursos humanos no País, mas muito mais às limitadas possibilidades para alcançar os níveis exigidos e às razões para sua existência.
O descontentamento não resulta, portanto, da exigência de produtividade, já que não se trata de refutar a importância e a necessidade de publicar. Publicar faz parte da atividade científica. Ocorre, porém, que subjacente ao “sistema de recompensa” baseado na produtividade científica opera um vigoroso feedback de reforço: em termos gerais, pode-se dizer que quem publica mais recebe mais recursos para pesquisa, que por sua vez possibilita aumentar o número de publicações, num ciclo de reforço contínuo. Como resultado, os volumes mais expressivos de recursos para a pesquisa tendem a se concentrar cada vez mais (por região, por instituição, por pesquisador). Em outras palavras, quem já tem muito financiamento para pesquisa recebe cada vez mais recursos (individual e institucionalmente), restando aos demais, a disputa pelas migalhas, dificultando o acesso às benesses do “sistema de recompensa”. Daí o descontentamento.
Além disso, se é verdade que o aumento vertiginoso do número de publicações científicas (número de periódicos e número de artigos científicos) não resulta somente da pressão para publicar mais, mas resulta também da própria expansão da pesquisa científica como atividade humana no mundo todo, o “publicismo” reforça ainda mais esse crescimento. Vivemos hoje a era da indústria científica, e a pressão para publicar produziu o que denomino de fordismo científico. Agora, artigos científicos são produzidos em massa (basta verificar o crescimento da RBCS!), como em uma linha de montagem: do estudante de iniciação científica ao pós-doc, todos juntando partes para o mesmo resultado final - o artigo científico. É curioso observar que, neste processo, a lógica da produtividade é a lógica da repetição, e não da criação, da novidade. Como resultado, temos cada vez mais cientistas e menos Ciência, sem que aqueles estejam, inclusive, muito cientes disso.
Por conta disso e como em um processo industrial, o que se produz em grande quantidade também precisa ser avaliado quanto à sua qualidade. Todavia, o argumento falacioso mais recente, é de que o número de citações de um artigo ou de um periódico, medidos pelo Fator de Impacto (FI), seria uma medida de qualidade do que se publica. O pressuposto implícito aí é de que quanto melhor o artigo (ou o periódico), mais ele seria citado. Por várias razões esse argumento não se sustenta. Assim como a Ciência é sempre contextual, ela também é produto do seu tempo. Ou seja, para além da qualidade ou não, um artigo que aborda um assunto “da moda” (e que recebe, por isso, mais financiamento), tende a ser mais citado. Talvez como exemplo extremo desta situação, possa-se lembrar o artigo fraudulento sobre células-tronco publicado na Science por um cientista sul-coreano. Imagine-se só o FI deste artigo, que não passava de uma fraude (chancelada, durante certo tempo, pelo “peer review”, dado até então como praticamente infalível). Em outras palavras, o FI de um artigo pode ser construído, fabricado ou, o que me parece a melhor expressão, forjado, independentemente de sua qualidade. Ainda assim, o problema não está no FI, ou de que se monitore o FI de pesquisadores. O problema é utilizar o FI como instrumento de política científica ou de um “sistema de recompensa”. A pressão para publicar e a obsessão pelo FI são, assim, a expressão de um tipo de fundamentalismo: o científico, em que os meios para se fazer Ciência antes de serem valorizados, são desrespeitados.
Todavia, para justificar tudo isso, tem sido dito que a pressão para publicar é uma forma de “prestar contas à sociedade” pelos investimentos feitos em pesquisa. Desde quando “a sociedade” lê artigos científicos? Ora, este é outro argumento falacioso, e o “publicismo” não pode, de forma alguma, ser considerado uma forma de “prestação de contas à sociedade” como pretendem alguns. Isso não faz o menor sentido, já que “a sociedade” simplesmente “não dá a menor bola” para a produtividade ou para o Fator de Impacto! Por isso, é inaceitável que a pressão para publicar resulte da intenção de prestar contas. Na melhor das hipóteses, é um instrumento de acompanhamento, cômodo e equivocado é bem verdade, por quem se diz ou é responsável pela gestão de fundos públicos para pesquisa. E o que é pior, muito amiúde o FI é tomado como o oráculo supremo desta suposta prestação de contas, a ponto de se assumir que quanto maior aquele, melhor seria esta, inclusive para a sociedade.
Evidentemente, como já se disse, não se pretende aqui negar a importância de se publicar. Longe disso, mas o que precisa ser apontado de maneira clara é porque as coisas são assim do jeito que são, já que a pressão para publicar não é fruto do acaso e nem tampouco é “natural”. Isto é um aspecto muito importante. De forma alguma o “publique ou pereça” pode ser considerado como algo que aconteceu naturalmente (uma breve história pode ser lida em http://en.wikipedia.org/wiki/Publish_or_perish). A pressão para publicar resulta da ação consciente de nossos colegas professores e pesquisadores que nos representam, por exemplo, na CAPES e no CNPq. São eles que, motivados por razões diversas, ano após ano refinaram o “sistema de recompensa” baseado no “publique ou pereça”. Se publicar ou perecer é uma imposição, então ela se deve mais aos nossos colegas (e a nós mesmos) do que por vontade de alguma deidade. E isso não tem nada de “natural”, assim como também não resultou “naturalmente” do processo de consolidação da formação de recursos humanos e da pesquisa no Brasil. Aliás, no Brasil, a pressão para publicar resulta antes de um mimetismo científico (não foi por aqui que se inventou o “publique ou pereça”). Portanto, apontar que a pressão para publicar seja algo natural não passa de um subterfúgio, consciente ou não, para ocultar as causas que a fizeram surgir e que a mantém, o que dificulta, se não impede, que sejam criadas as circunstâncias para a sua superação.
Mas então, o que fazer? A mudança começa necessariamente pelo reconhecimento de que a pressão para publicar não é nem uma imposição de origem desconhecida nem é “natural”, mas é um instrumento de recompensa ou de punição, dependendo da perspectiva, organizado pela própria comunidade científica e acadêmica. Portanto, se a origem da pressão para publicar está em nós mesmos, também é em nós que se encontram as possibilidades de mudança. Assim, por exemplo, se no sistema de recompensa baseado na produtividade científica operam vigorosos feedbacks de reforço, como foi discutido, nossos colegas que nos representam nas agências de fomento precisam defender, com o apoio de sociedades científicas como a SBCS, a implementação de feedbacks de equilíbrio. Ou seja, de que a distribuição de recursos para a pesquisa não se baseie exclusivamente na produtividade científica ou no FI. De outro modo, dificilmente poderemos superar este tipo de fundamentalismo científico baseado na pressão para publicar.
Por tudo isso, enquanto se aumenta a pressão para publicar, penso que o movimento deveria ser o inverso. Faço deste documento, portanto, um libelo inicial pelo movimento “slow publishing”: pensar mais, publicar menos, publicar melhor. Mesmo porque não se trata de viver para publicar, nem tampouco publicar para viver, e muito menos ainda de “publicar ou perecer”, mas tão somente viver... e... publicar, as vezes! E publicar para viver melhor, para ajudar a “aliviar a miséria da existência humana”. O que não é pouco, convenhamos!