O texto a seguir foi escrito já há algum tempo, logo depois que surgiram as primeiras denúncias da existência de um "mensalão" no Congresso Nacional, durante o primeiro governo Lula.
As denúncias de corrupção no Governo Lula, para além de seus possíveis desdobramentos políticos, tem atraído as atenções da política, da mídia e da opinião pública, e ajudam a reforçar na população um sentimento de que os governos são notoriamente incapazes de lidar com os [reais] problemas do País, e incapazes de cumprir metas e de atender os reclames básicos da população. Em relação à corrupção, certamente não se pode ignorar que ela existe desde que há política, e de que talvez faça mesmo parte do jogo político. Mas ainda que não seja razoável desconsiderar o papel da política em tudo o que está acontecendo, ela só não é suficiente para entender a complexidade da situação, sob pena de se adotar uma abordagem reducionista ou de se oferecer mais uma explicação de validade duvidosa. Por isso, pretende-se situar a emergência da corrupção e da ineficiência governamental num outro quadro de referência e percebê-las, juntamente com o momento político atual, como uma possível manifestação de uma falha sistêmica.
De modo geral, governos esposam um modelo mental que os orientam tanto na formulação de políticas públicas quanto no processo de tomada de decisão, e o esposam com tamanha fidelidade que chegam mesmo a dele tornarem-se reféns. Talvez porque somos herdeiros de uma tradição ocidental de pensamento, o modelo mental de governar mais comum entre nós é do tipo comando e controle que, no exercício do poder, se manifesta pela pulverização dos problemas e também das próprias instituições. Politicamente, este modelo mental não raramente se manifesta através do loteamento de cargos e funções. Apoiados neste modelo, os governos reduzem a inerente complexidade das situações-problema com as quais têm que lidar, dividindo-as em partes para supostamente melhor comandá-las e controlá-las. Este modelo mental deixa-se traduzir exemplarmente pela metáfora de máquina, cujas partes, assim se crê, podem ser independentemente comandadas e controladas na busca de um objetivo. Mas como se sabe, organizações costumam falhar em seu desempenho como um todo quando as partes são comandadas independentemente umas das outras. Portanto, não deixa de ser curioso assinalar que freqüentemente se usa a expressão “máquina estatal” exatamente para caracterizar não só sua inércia como também sua ineficiência. Governos, porém, têm que lidar com conjuntos de problemas interconectados, que não deixam se decompor em problemas mais simples. Por isso, o modelo comando e controle revela-se cada vez mais incapaz e inapropriado para gerir as situações de complexidade [segurança pública, saúde, educação, emprego, etc.] com as quais os governos se defrontam, e para dar conta dos desafios impostos pelos ambientes nos quais os governos operam.
Portanto, o que se vê mais uma vez agora como corrupção pode ser tomado como uma manifestação de uma grave falha sistêmica. Sistêmica, é importante destacar, não porque ela possa estar “irrigando todos os Poderes”, como aponta o Professor Giannotti (Mais!, 26/06/05) e, assim, disseminada por todo “o sistema” como muito tem-se ouvido dizer nestas últimas semanas, mas porque resulta sistemicamente da incapacidade de gerir as conseqüências indesejadas de um sistema de governo baseado na eficiência das partes e do seu controle, com nenhuma atenção ao ambiente do qual este sistema de governo se distingue. Assim é que mesmo políticas públicas consideradas boas, baseadas em valores fortes e práticas idôneas [Fome Zero, Primeiro Emprego, etc] são difíceis de serem executadas e acabam por apresentar resultados muito aquém dos esperados, promovendo grandes desapontamentos.
Além disso, o modelo comando e controle tende a tratar as pessoas de maneira instrumental, admitindo que seria possível controlar o comportamento das mesmas, subestimando a interconectividade entre pessoas e eventos e todas as suas implicações [a CPMI dos Correios revela exemplarmente o que pode acontecer quando esta interconectividade é subestimada].
Falhas sistêmicas somente podem ser superadas adotando-se um modelo mental distinto daquele que as fez surgir, caso contrário suas manifestações, como a corrupção, podem reforçar ainda mais o modelo mental que permitiu seu próprio aparecimento, uma vez que pode se imaginar que para acabar com a corrupção seria necessário ainda mais comando e controle. Por isso, é temeroso pensar que práticas isoladas (como uma reforma do sistema político, p.ex.) por si só seriam suficientes para superar falhas sistêmicas, como as que ocorrem na administração pública. Governar significa literalmente conduzir sistemas de atividade humana complexos, diversos, [em ambientes] essencialmente imprevisíveis, cuja capacidade de aprendizagem não pode ser negligenciada. Portanto, governos têm que aprender a pensar diferente para agir diferente, e precisam encontrar um novo quadro de referência para formular e a implementar políticas públicas, para definir o que pode ser alcançado e quais os meios necessários, o que permitirá, inclusive, adotar uma nova atitude em relação às falhas.
Falhas sistêmicas não resultam somente da má vontade de pessoas e de instituições, mas fundamentalmente da incapacidade de aprendizagem que decorre da adoção de um modelo inapropriado de gestão da complexidade dos sistemas de atividade humana e de seus ambientes. As falhas sistêmicas no Governo Lula precisam tornar-se oportunidades de aprendizagem que permitam a construção de futuros mais responsáveis. O modelo mental de comando e controle precisa dar lugar a um modelo mental baseado na aprendizagem. Mas para que isto seja possível, é preciso assumir uma nova atitude e enfrentar o desafio de mudar o modelo mental que orienta a forma de governar. Reformas políticas nem sempre são suficientes, e é preciso mudar não somente as práticas de governo, mas seus próprios objetivos. Ao invés de um sistema de governo é preciso uma forma sistêmica de governar. Mas há que se ter claro também que adotar uma perspectiva sistêmica de governar não é tarefa fácil, pois como já apontava C. West Chuchman, a política é um dos seus principais inimigos. O modelo mental de comando e controle e a sua metáfora de máquina precisam ser substituídos não porque vivemos em uma “época de mudança”, mas porque vivemos “uma mudança de época”.
Em tempo: a ocorrência de falhas sistêmicas em governos não é privilégio do Governo Lula, e pode ser verificada pelo mundo afora, como nos governos Bush, Blair e Sharon, para citar somente alguns deles.
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